A DESPEDIDA DO ANO 2002
Um artigo publicado na Secção OPINIÃO do Bot'Abaxo!, da autoria de JOÃO MARQUES DOS SANTOS e publicado no CORREIO DA MANHÃ de hoje, dia 31.12.2002, e que exprime todo o profundo sentimento que envolve grande parte dos Portugueses e nos quais me incluo. Digno para despedida de um ano para esquecer, escrito com frontalidade, realismo e grande sentido político:
O ANO QUE SE SEGUE
Estamos irremediavelmente condenados à projecção do passado e a continuar a vivê-lo. Os tempos não serão bons para ninguém
Estamos a poucas horas de mais uma passagem de ano. Continua a ser um pequeno mistério porque correm todas as pessoas a fingir um contentamento tão convencional e tão pouco espontâneo.
Mas nunca como hoje foi tão verdade que o querer fingir que alguma coisa mudou não muda absolutamente nada.
E também nunca, como este ano, tivemos a sensação de que , realmente, nada irá melhorar as nossas vidas.
E cada vez se torna mais doloroso fingir. Não nos é sequer permitida a ilusão de que se irá entrar num tempo novo. A fantasia vai durar exactamente uma noite, para os mais arrojados.
Para os outros durará uns amargos minutos, o tempo de levantar e bebericar uma taça de champanhe. Nem a ressaca nos deixará tempo para esquecer o pesadelo da véspera e que, de novo, nos espera.
Cá por casa e lá por fora. Hoje não temos razões para comemorar nada. Nem o fim de um ciclo, que está longe de acabar, nem o início de outro, que ainda nem sequer sabemos o que será nem quando começará a despontar.
Logo à noite iremos todos beber , mas apenas para não nos perdermos na solidão e dar de beber à dor, como é fado dos Portugueses.
Se tudo o que está para traz das vinte e quatro horas de 31 de Dezembro se apagasse, deixasse de produzir efeitos, desaparecesse para sempre da nossa memória e do nosso dia-a-dia, justificava-se uma comemoração de arromba.
Viesse o que viesse. Mas não. Estamos irremediavelmente condenados à projecção do passado e a continuar a vivê-lo. Os tempos não serão bons para ninguém.
Nem para o próprio Governo, que prisioneiro dos seus medos, das suas contradições e muitas mordomias , sem soluções à vista para os nossos males, e sem a noção das conveniências, joga descaradamente à defesa e nos acena com um mirífico oásis para 2006 , mas na verdade o que nos anuncia é um grandioso buraco negro para os próximos 3 anos. E , como se não nos bastassem os nossos males, cada vez dependemos menos de nós próprios.
Estamos reféns de uma Europa cada vez mais artificial, mais cheia de contradições e incertezas, mais desigual, mais insatisfeita e mais impotente. E que cada vez nos dá menos e nos impõe mais.
Que ela própria se submete a quem , de fora, tudo manipula desde o investimento, ao custo do dinheiro, ao preço da energia, à definição do bem e do mal, à paz e à guerra.
Vemos por todo o Mundo a submissão canina , a que poucos escapam, de quase todas as instâncias e governos mundiais, incluindo o nosso, ao cowboy americano, que Kubrik tão bem antecipou, a cavalgar bombas, com sofisticados mísseis à cintura e infernos nos olhos, numa mistura tenebrosa do real com a banda desenhada.
Esse zé ninguém em termos de dimensão humana, que com o pretexto de acabar com o terrorismo , afinal, o pratica à sua maneira.
Que antecipa guerras para "as evitar". Que já perdeu há muito a noção das fronteiras do seu país, que revolve o Mundo atrás do petróleo como os porcos revolvem a terra atrás das trufas.
Que vê os chefes de governo de todo o Mundo como obscuros governadores civis e nisso os transforma.
Que, decididamente, se julga um novo profeta, sem capacidade de entender que tal como muitos outros antes dele não passa de uma caricatura, grotesca, mas com real perigosidade , do cavaleiro do apocalipse.
O homem que Freitas do Amaral comparou a Hitler, alertando para o perigo de a maior potência mundial estar a ser comandada por um homem de fraco entendimento e duvidosa sanidade mental.
É neste Mundo que vivemos e nele não existe saída de emergência. Logo à noite vamos comemorar o quê? A nossa desgraça ou a nossa impotência?
Nem uma coisa nem outra . Do início da noite às seis da manhã vamos transportar-nos para um mundo ainda mais surreal do que o que nos cerca.
Não vá o diabo tecê-las e ser a nossa última torneira de escape durante os longos meses que se aproximam. Vamos todos pôr-nos de acordo quanto aos comezinhos lugares comuns desta data. Sem preconceitos nem ilusões.
Saborear os nossos delírios e contradições. Que se lixe a realidade. Para isso cá estará a madrugada com todos os males do Mundo a saltar dos confins da noite ao primeiro toque do despertador.
Bebamos em grande!
João Marques dos Santos
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