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11-01-2003
Falta de castigo
Há trajectos que estão escritos nas estrelas - ou no Inferno. O de Bibi começou a ser esculpido à nascença. E atravessou 30 anos de violência sexual na Casa Pia, a coberto da impunidade que só os poderosos garantem. Está preso, mas diz-se de consciência tranquila.
Bibi aguarda julgamento atrás das grades
Nunca pensou ser descoberto. Sempre se defendeu com o arremesso de nomes sonantes que tinham o mesmo vício. Nunca esperou castigo, estava protegido. E assim andou 30 anos. A tendência revelou-se cedo e talvez a ordem das coisas lhe tivesse vincado o trajecto: era ainda menino e vivia em Portugal.
País de duas faces. O rosto conservador e beato escondia pessoas da alta sociedade que exploravam a pobreza sem picos na consciência. Carlos Silvino era ainda bebé quando entrou numa das instituições que o regime alimentava como fachada da sua generosidade.
A Casa Pia era como o fado: uma casa pobrezinha, com certeza. Foi lá que Bibi, cognome com que passará à história, traçou o passado de pedófilo, proxeneta e recruta de menores para a fina-flor de Lisboa e estrangeiros que aproveitavam o país pelintra para as suas perversões.
Durante três décadas pulou todas as acusações que lhe foram feitas, transformou em farrapos as provas que crianças violadas por ele apresentaram. Intimidou, jogou, sobreviveu. Quando o cerco o apertava dizia: «Ninguém me apanha, conheço muita gente influente.» Hoje, finalmente, está preso. Mas sozinho. Se bem que nem tudo o que parece é.
Carlos Silvino Silva nasceu no Cercal em Agosto de 56. A mãe, Madalena da Encarnação Silva Raposo, não tinha amparo, nem nome de pai para dar à criança. Estava com 25 anos e no Alentejo esgotara a sorte. Para desencalhar do enguiço da pobreza parte para Lisboa com os dois filhos: o Carlos e a Isabel, dois anos mais nova.
Vai servir para casa de um comerciante espanhol estabelecido na capital. A partir daí, no Alentejo perderam-lhe o rasto. Até Genoveva, uma das várias irmãs, a pôs na lista do esquecimento.
Nem as feições dela recorda: «Nunca mais soube o que era feito dela, foi servir para fora tal como eu. Somos para aí uns 12, todos de pais diferentes, perdemo-nos uns aos outros.»
O comerciante espanhol, à época, ainda era casado. Apreciou a alentejana e contratou-a com a condição de se livrar dos rebentos. O que ela fez. Depositou o varão na Casa Pia sem olhar para trás. A menina terá tido melhor sorte. Carlos ficou no colégio Nuno Álvares sem álbum de memórias nem visitas de família.
Os anos passaram e ele arrastava-se na primária. Aos dez anos, muda para o Maria Pia, colégio que recebia as crianças mais velhinhas. Aí, onde ficará até aos 19 anos, fica-se pelo 2º ano. Valdemar, chefe de pessoal, lembra-o: «Era uma criança muito instável e com problemas de aprendizagem, penso que tinha uma deficiência qualquer.»
Corria o ano de 67. Portugal fazia as manchetes de jornais internacionais. Um escândalo de corrupção, que ficaria nas páginas da história como Ballets Rose, desmascara o regime. Figuras importantes e alguns estrangeiros de nome estavam sob investigação da Judiciária por atentado ao pudor de menores.
A Casa Pia safou-se desta por pouco. Senhores com fortuna corrompiam Francisco Rodrigues, o provedor, para poderem tirar partido das crianças. Foi na praia da Areia Branca, onde a instituição tinha um dos seus acampamentos de férias, que a coisa cheirou a esturro a Manuel Moura, o motorista do acampamento.
Um grupo de americanos, capitaneado pelo milionário Ken Rogers, que mais tarde seria o personagem central da primeira sindicância à Casa Pia, entregava-se a malícias com crianças.
Carlos Silvino por ali andava, ainda petiz. Mas para o motorista era um miúdo entre tantos outros. Só havia um senão: «Era um bocadinho deficiente.» Dizem que foi aí que atentaram contra o seu pudor e que nasceu a sua predisposição de pedófilo. Certo, certinho, é que mais tarde para ali arrastaria muitas das suas vítimas.
Ken Rogers não largava a instituição. O provedor apresentava-o a outros funcionários como alguém do governo americano, ligado a assuntos sociais. O dinheiro ia entrando, até um gabinete de dentista o milionário ofereceu à casa. Manuel Moura passou a ser o motorista de serviço para lides estranhas. De quando em quando, Francisco Rodrigues chamava-o.
Os americanos amigos de Rogers estavam para chegar. E o motorista lá ia para o aeroporto com a camioneta cheia de garotos. Se ainda tinha dúvidas, perdeu-as. Homens, que ele soubesse, não afagavam assim os meninos: «Uma vez os preceptores chamaram-me para ver a cena.
Estavam aos beijos e abraços às crianças e ao serem descobertos deram sete dólares a cada um de nós. Nenhum aceitou.» Mas as coisas não ficavam por aqui. À noite, os meninos eleitos tinham lugar no leito dos americanos que, acaso ou não, ficavam hospedados num hotel de um dos homens envolvidos nos Ballets Rose: «Os pequenos seguiam para o Hotel Embaixador.
Era uma pouca-vergonha. Algumas dessas crianças chegaram mesmo a ir para os Estados Unidos, não sei se voltaram ou não.»
Quando as manigâncias do provedor chegaram às orelhas do capelão do Maria Pia o regime tremeu de novo. O padre António ouvira alguns miúdos, quebrou o segredo do confessionário e moveu um processo. Mas o regime mostrava o seu lado mais negro e foi o capelão que acabou por ser corrido e o processo destruído a mando de Américo Tomás.
A infância nem sempre é cor-de-rosa. Os miúdos pareciam todos iguais no mau pano cinzento das fardas. As camaratas eram enormes e geladas. Cada uma levava 128 alunos. À noitinha, quando os vigilantes dormiam, alguns garotos que começavam a sentir os apetites da carne deitavam-se uns com os outros.
Era a forma que alguns tinham para se encontrarem com o afecto. Aos 12 anos, Carlos Silva, já alcunhado de Bibi, fizera a sua escolha. António Magalhães, aluno mais velho, já percebera as tendências do rapaz.
Anos mais tarde, quando é ouvido numa sindicância que reabriu o caso do americano e iniciou o caso Bibi, acabaria por admitir: «Contei que tinha conhecimento de práticas homossexuais já quando ele tinha 11 anos.»
O regime está com os dias contados. Bibi fizera 17 anos e acabava o 2º ano no ensino de adultos. Era «aluno maior», ou seja, não tinha nem família nem emprego e a instituição esperava que a assistência social lhe desse solução. Amélia Janeiro, educadora e mulher do director, apesar da fama de Bibi, escolhe-o para monitor dos alunos mais novos.
Tinha-se tornado um rapaz entroncado, de metro e oitenta para cima, metia respeito. As crianças estavam à sua mercê. Caiu na camarata como uma trovoada no sonho das crianças. À frente dos outros meninos, amarrou um deles, de nove anos, a uma cama e dele tirou gozo sem piedade.
Mas, apesar das ameaças e da vergonha, a dor do pequeno sobrepôs-se ao medo. Correu para a enfermaria onde Celeste o coseu. De seguida, a enfermeira participou.
Abril chegara. Na Casa Pia o provedor é saneado e uma comissão de gestão arruma a instituição. Valdemar, que conhece Bibi desde garoto, é um dos elementos. É chamado à enfermaria, nem quer acreditar: «Ainda vi sangue no rabiosque do miúdo.»
Não perdeu tempo e chama o violador ao seu gabinete. Bibi negou com toda a veemência. Nestas alturas ficava extremamente calmo, só os olhos piscavam: «Sempre foi muito mentiroso, nunca assumiu mas foi para a rua. Nós já não tínhamos nenhuma responsabilidade sobre ele, era maior.»
Mas o rapaz já esboçava a sua têmpera, não iria ficar parado. E um ano depois, por inculcas de alguém, é admitido como vigilante na secção de Pina Manique.
Incapaz de refrear os seus apetites, em 20 dias lançou o terror nas camaratas dos alunos mais pequenos e a revolta entre os maiores. Aprendera com o último susto e deixou-se de efusões em público. Tinha a tarefa de cuidar dos meninos durante a noite.
De madrugada, entrava nas camaratas e tirava o partido que podia sem acordar ninguém. Adelino Granja, hoje advogado, acordava várias vezes com umas mãos que lhe afagavam o corpo: «Às vezes isso levava-me a sonhar com os meus pais e quando acordava é que percebia que era ele.»
As suas ciladas passam a ser pensadas. A escolha é feita entre os mais fracos. As crianças têm uma imaginação muito animada e a troco de uma guloseima ou de poderem transgredir o horário para assistirem à série Bonanza deixavam-se cair na esparrela.
Uma vez no quarto, trancados, eram obrigados a submeterem-se às febres do vigilante que se tornara um veterano no sacrifício de menores. Naquele pavilhão os meninos deixaram de ter os sonhos cor-de-rosa que a idade arrasta. Passaram a ficar de vigília noite fora a ver se eram poupados.
Chegou a vez de Daniel, que se transformou, durante meses, numa das várias presas de Bibi. Não era homem de emoções e nunca se afeiçoava apenas a uma criança. Daniel acompanhava-o ao quarto sem oferecer resistência e satisfazia-lhe os prazeres : «Era muito frio e cruel. Nunca pensei pedir ajuda, tinha muito medo.»
O vigilante, entretanto, refinava a sua perversão. No intervalo dos exercícios, mal as vítimas saíam, apontava num diário tintim por tintim as suas façanhas.
Os mais velhos começaram a desconfiar. Romão ficava com outros à coca noite dentro e quando o viam levar um miúdo para o quarto seguiam-no. Bibi dava os seus ensinamentos: «É pá, faz assim, toca-me assado. Ouvíamos os gemidos de excitação.»
Um dia, os mais velhos fizeram um motim. Eram da mesma espécie, estavam sozinhos e tinham de se defender. Assaltam o quarto do Bibi, roubam-lhe o diário e convencem os menores a confessarem por escrito os crimes do funcionário. Entregaram as provas aos preceptores e vigilantes.
Em apenas 20 dias, Bibi tinha violado uma dezena de crianças. É de novo expulso pelos colegas. Nem regateou, estava-lhe prometida uma valente sova e denúncia na PJ.
Ele não era propriamente corajoso. Mas o vício gania mais alto. É, pela primeira vez, ouvido na PJ mas o susto não o travou. Parecia um cão esfaimado e, quando menos se esperava, voltava a aparecer. A casa que o criara era a sua atracção fatal.
Tornara-se manhoso, insinuava-se junto dos que tinham poder. Estava sempre pronto a um favor. E a proximidade dava-lhe acesso a segredos que aproveitava a seu tempo. Foi fazendo amigos e cúmplices que, quando entrava em queda livre, lhe davam a mão.
Mariana Pereira da Costa, ajudante de cozinha, recolhe-o em sua casa. A mulher, que parira uma montanha de filhos de quem mal dava conta, trata-o como a um filho legítimo: «Ele era um desgraçado, não tinha família e sempre foi muito doce, ajudava-me na cozinha, fazia todos os recados que eu lhe pedisse.» Mas, verdade verdadinha, é que Bibi tinha família. E, por ignorância, ou compromissos que o tempo sela, dizia-se só no mundo.
Enquanto Bibi anda à deriva, Madalena, a mãe, casa. Há 20 anos que servia na casa do comerciante espanhol que entretanto enviuvara e a continuava a amparar. Vive num segundo andar da Filipa de Vilhena. O comerciante é amigo de Arnaldo Arouca, vizinho do lado que também enviuvara.
O homem vinha de boas famílias, mas a morte da mulher e a tuberculose que tomou conta da única filha levara-o a correr mundo para a tentar salvar. Sem êxito. A fortuna dissipou-se mas o ordenado que ganhava nos Serviços de Melhoramento do Animal não eram de desdenhar.
Estava com 83 anos quando decidiu desposar a criada de servir do espanhol. Carlos Moleiro, colega de serviço, foi um dos padrinhos, apesar de não ver com bons olhos o enlace. Pouco sabia de Madalena para além da idade, 46 anos, e nem sonhava que ela tivesse filhos.
Mas era o único confidente de Arouca: «Contou-me que ela era amante do espanhol mas que ele se estava nas tintas porque precisava de alguém que cuidasse dele.»
O que Madalena fez como manda a Bíblia, até que a morte os separou. A mulher só colocou uma condição para o casório: «Queria viver com ele mas continuava a servir o espanhol.» Entre uma casa e outra, a alentejana não deveria arranjar tempo para se lembrar dos filhos que deitara ao mundo. Entre eles Bibi.
Foi por esta altura que Afonso, que com 10 anos começava a pensar fugir de casa para escapar ao cinto do pai que lhe zurzia o corpo dia sim dia não, conheceu Bibi. Andava na Paula Vicente, escola preparatória a um passo da Casa Pia, e no jardim de Belém fez uma descoberta aliciante.
Os miúdos de Pina Manique andavam bem vestidos e com os bolsos cheios de papel. Havia mesmo quem exibisse relógios de ouro e já tivesse mota. Com a inveja típica das crianças, decidiu que queria ser como os outros. Viver como os pássaros e dormir em qualquer ramo.
Os seus melhores amigos eram dois irmãos que tinham sido iniciados por Bibi. Mas o funcionário, que nunca teve motins sentimentais, depois de os usar passava-os a clientes. Afonso nunca apreciou a figura. Às vezes acompanhava-o, mas a brutalidade do outro recorda-lhe o pai de quem fugira: «Cheguei a vê-lo a violar crianças até no cinema.»
As crianças têm tendência para a asneira e a pobreza dá um empurrão. Afonso decide estabelecer-se por sua conta: «Os miúdos que trabalhavam para o Bibi tinham de lhe dar a maior parte do dinheiro e não estive para isso.» Mas o circuito era o mesmo, a clientela também.
Passa a frequentar a Praça do Império e cativa o primeiro cliente. Era um indivíduo alto, magrinho, óculos pendurados no nariz. Tinha um Mercedes e pertencia ao corpo diplomático. Depois passou para o neto do criador de uma importante fundação. E assim começou a espreitar a vida dos ricos.
De militares a políticos, todos queriam o fruto proibido. Um dia encalhou na casa de um pediatra. Teria já 12 anos e tornou-se modelo de filmes porno do doutor. Era o número 27 das várias fitas que o médico ia acumulando para gozo dos amigos e para manter intactas as suas fantasias de pedófilo.
Em 2002 tinha, talvez por influência de Kamasutra, 69 filmes pornográficos com actores menores. Ninguém dava conta, mas Portugal tornara-se num ninho de pedófilos. Uma rede que estendia os seus tentáculos e entrava no mundo do negócio.
Afonso é usado, filmado e fotografado. Um jornalista escocês, correspondente de um semanário inglês, recebe as receitas. O homem vivia à larga numa mansão em Sintra guardada por 24 pastores alemães.
Quando os senhores da alta roda se fartavam das crianças remetiam-nas sem perros de alma para ele. Afonso foi no molho e, com outros rapazes e raparigas, é fotografado em orgias obedecendo ao encenador: «Depois ele publicava as nossas fotos numa revista qualquer estrangeira.»
Entretanto, na Casa Pia tomara posse novo provedor, José Simões. Este, apesar dos avisos de Américo Henriques, mestre de relojoaria que encabeçava o pequeno grupo de educadores que tinham conseguido afastar Bibi, admite-o.
Começa uma luta sem tréguas. O professor vasculha na secretaria as declarações escritas pelos menores violados dois anos antes. Estavam em paradeiro incerto.
Perdeu a cabeça, entrou no gabinete do superior: «Você é um criminoso.» O outro nem lhe passou cavaco. Despachou-o sem sequer se encolerizar com o insulto: «Seja mais humano. O homem mudou. Parece que vai casar e tudo.»
Bibi regressa em 77 mas é afastado das camaratas dos alunos. Fica empregado auxiliar, faz de tudo, desde serviço de jardineiro a auxiliar de cozinha. A maior parte dos funcionários apreciam-no. Bibi está sempre disposto a ajudar. Cobre as faltas dos outros.
É divertido, toca guitarra e trompete e na banda anima as cerimónias festivas. Paula Costa, filha da cozinheira que o protegia, era a vocalista que Bibi acompanhava à guitarra: «Era muito animado e prestável.» Cada vez que o funcionário era demitido, a mãe da rapariga acolhia-o.
Por isso, Paula conhecia-o de ginjeira: «Sabia bem que ele gostava de miúdos mas ele tinha uma grande lábia. Quando se falava do assunto mudava logo de conversa.»
Um ano depois, Bibi está a cumprir o serviço militar. A instituição topa-o logo. Aliás, o cabo não sairia do Ralis sem ter a caderneta manchada com três dias de detenção. Mas nem o cinto militar o trava. Bibi não conseguia viver longe do local do crime.
Quando se podia escapulir, esperava os alunos no portão e aliciava-os com tabletes de chocolate ou bilhetes para o cinema. João tinha 12 anos, idade sem história, e acompanhou-o a uma sessão.
Era muito pequeno e ainda não sabia tratar as coisas pelo nome, mas ofendeu-se com os avanços e denunciou-o: «No cinema ele começou a tratar-me como a uma rapariga.» O vício do homem tornara-se imparável.
Regressa da tropa com mais apetite. Passara a jardineiro e o seu quarto fica afastado das camaratas dos alunos. Mas era muito criativo. Um barracão que servia de arrumações passa a ser o altar para o sacrifício dos miúdos. Chamava à alcova a «Casa das Ratas». Socorre-se de prendas para atrair os miúdos à toca.
E, em pouco tempo, os rumores de novas violações espalham-se. O grupo do costume ouve as crianças que fazem declarações escritas. Mas Américo, que já não acredita na instituição, decide lutar com outras armas. Informa o Ministro dos Assuntos Sociais, faz-lhe o retrato da Casa Pia e rasga o passado de Bibi.
Os crimes têm nome e o professor denuncia: «(...) O próprio provedor substituto, Sr. Eng. Peixeiro Simões, está directamente implicado no processo de degradação moral e física...» Do Ministério, o professor nem eco escuta. Vira-se para Teresa Costa Macedo, secretária de Estado da Família.
A história, como é sabido, repete-se. E tal como padre António, que antes do 25 de Abril denunciara as mesmas práticas sendo mimoseado com a expulsão, Américo recebe a primeira admoestação: «Quanto ao mestre de oficina, exorbitou as suas funções incorrendo em faltas graves puníveis pelo Regulamento da Casa Pia...» Mas o mestre não desiste. Participa à PJ. Algumas pessoas são ouvidas, mas não há entusiasmo na investigação.
No casamento de uma amiga
Dois anos depois, em pleno governo AD, rebenta a bronca. A versão Ballets Rose II, mas que a democracia conseguiria apagar da história.
Um rapaz e uma rapariga desaparecem de colégios da Casa Pia. Durante 15 dias não há rasto deles. Os preceptores ouvem os amigos mais chegados e descobrem o paradeiro. É Orlando, um dos miúdos violados por Bibi que já prestara declarações no processo que Américo movera na PJ, que indica o paradeiro dos colegas. Cascais, apartamento de Jorge Ritto.
É o porteiro, conivente com o diplomata, quem abre a porta. Inicia-se o famoso processo de Cascais, que para bem ou mal da nação acabaria por ser queimado. Costa Macedo apresenta a sua versão. A mulher terá ficado gelada com o que viu e ouviu. A casa do diplomata era o ponto de encontro de políticos e do «jet set» nacional, que quebravam o tédio desfrutando de menores.
Diz a senhora que fez tudo para que o caso chegasse à barra do tribunal: «Mas na PJ esbarrei com um muro de silêncio pelo facto de haver gente muito importante envolvida e o Bibi era o principal agenciador de crianças para essa gente.»
António, um dos menores que frequentava a casa do embaixador, não se admira do desfecho da história. Nunca foi depor. Ainda hoje não trava as lágrimas.
O olhar esgazeado parece querer saltar-lhe do rosto quando recorda Bibi. Ainda por cima foi ele, iludido com a vida boa que os colegas levavam, quem se ofereceu ao funcionário. Silvino leva-o a casa de Ritto onde o porteiro já os esperava. Era uma espécie de bordel, onde o miúdo conheceu a fina-flor do país.
Um jornalista, já morto, que chicoteava crianças. Ilustres que compareciam acompanhados por modelos só para assistirem aos jogos sexuais que rapazes e raparigas, numa roda no meio do salão, executavam. No final do espectáculo, aplaudiam com entusiasmo. A desgraça dos outros é sempre um momento de diversão.
Quando António quis fugir não havia nada a fazer. A teia estava demasiado apertada, nenhuma malha se abria aos desertores. Rogou a Bibi mas ele transfigurou-se. Não estava para perder receitas e muito menos colocar em risco os seus clientes: «Bateu-me como doido e ameaçou-me.»
António matutou numa alternativa, e pensou que escolhera a melhor. Bateu à porta do director de Pina Manique e contou a história. Mas o homem ou fingiu ou não acreditou.
Quando António sai, entra Bibi. O miúdo encosta-se à porta para ouvir a conversa. Fica gelado, não quer acreditar. O outro admoestava o angariador: «Vocês andam nisto há tanto tempo e ainda não aprenderam a fazer as coisas como deve ser!» A vida corria de feição a Bibi. Ninguém o parava.
Cortado, à esquerda, na foto, com uma criança ao colo, numa festa de uma co- zinheira da Casa Pia
Mas em 1989 reúnem-se novas provas contra ele. Desta vez é Luís Rebelo, o provedor que acabaria por ser expulso da Casa Pia no seguimento da explosão do escândalo, quem lhe abre outro processo disciplinar. Bibi era seu motorista, cuidava-lhe do filho deficiente, e o homem até tinha boa opinião dele: «Sempre foi um funcionário exemplar.»
Mas desta vez era difícil protegê-lo. A poeira que o passado assentara provocava uma tempestade. A queixa da mãe de um menor de Pina Manique abre nova inquirição. João Vaz é nomeado instrutor do processo.
Era já o terceiro que o homem tinha de gramar. Sabia que o outro mentia com todos os dentes mas não calculava ainda do que ele era capaz: «Vieram dizer-me que ele dizia que me ia matar. Tive tanto medo que passei a andar armado.»
Mas, às vezes, as ameaças têm o efeito contrário. O instrutor não se deixa abalar e, finalmente, consegue reunir provas que levam à expulsão de Bibi.
O pedófilo é que não se conforma. Move montanhas, recorre. Passados dois anos, o Supremo Tribunal Administrativo dá-lhe razão. João Vaz fica de cara à banda: «É impossível que os responsáveis da Casa Pia não soubessem quem era.
E eram precisas muitas influências para escapar de tudo isto. Se eu conhecia casos gravíssimos, os outros também. Até se dizia que havia levas de miúdos que eram transportados para Angola através dele.»
Casa Pia: atrás destes muros, Bibi terá violado dezenas de crianças
Foram precisas três décadas para meter Bibi atrás das grades. Pela primeira vez a mãe de um menor dirigiu-se à PJ e apresentou queixa. Ana Paula não tem dúvidas: «Se tivesse tratado das coisas na Casa Pia tinha ficado tudo na mesma.»
Só depois da intervenção da justiça é que a instituição, que albergou o pedófilo anos a fio, agiu disciplinarmente e passou-o à reforma compulsiva. Mas mais uma vez Bibi estrebuchou, tratou de arranjar advogada. Dias antes de ser preso, Bibi não perdera a esperança: «Tenho a certeza que vou ser readmitido.»
A noite cai, os juvenis do Atlético Clube treinam futebol. Ancorado nas grades do campo, Bibi parece um galo cauteloso com os seus pintainhos. O jogo termina, os meninos entram nos balneários Carlos Silvino Silva é confrontado com as últimas acusações. O rosto parece um rochedo, nem um músculo entra em convulsão.
O olhar, impenetrável, segurava as perguntas: «Não, não sou pedófilo. Nunca violei ninguém.» O passado não gosta de alinhavar. É um homem só, sem família. O futuro remete para Nossa Senhora de Fátima, a quem pagou já várias promessas. Talvez a proximidade divina o faça repetir: «Estou com a consciência tranquila.»
Agora, o homem a quem nunca ninguém conheceu família, não está mais só. Isabel Raposo, a irmã, que há mais de uma quarentena de anos não o via, apareceu não por milagre mas de avião, dias depois de ele ser detido.
A mãe está viva mas esconde-se. A irmã tem o mesmo sangue mas nega. E, semana sim, semana não, faz o trajecto Holanda-Lisboa para o visitar e pagar as custas do advogado. A saga continua.
Bibi não queima um cúmplice e, no parlatório, repete às visitas: «Tenho a consciência tranquila.» Deve ser verdade, ninguém sabe onde começa e acaba a dita cuja.
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Bibi na tropa... |
... e depois de ter deixado a vida militar |
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Mariana Pereira da Costa, a ajudante de cozinha da Casa Pia que sempre protegeu Bibi |
O vigilante a tocar guitarra numa festa do Colégio de Santa Clara |
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Uma festa na Casa Pia (Bibi está de pé, com óculos escuros) |
No casamento de Ana Paula, a filha da cozinheira |
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Um jogo de futebol na Casa Pia. Bibi fazia parte da assistência nestes encontros |
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Texto de Felícia Cabrita
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