04-02-2003

SOS A UM DESCONHECIDO

Carta de Fernanda Teresa
de Sousa Correia Cruz,
figura chave dos acontecimentos
ocorridos na década de 80
com crianças da Casa Pia

"Portugal, 21 de Janeiro de 2003

Exmo sr.(a)

Permita-me que lhe escreva para o seguinte:
Chamo-me Fernanda Teresa de Sousa Correia Cruz, nasci a 27 de Maio de 1967 e eu e os meus dois irmãos fomos alunos da Casa Pia em Lisboa. Por razões diversas, separaram-nos e já lá vão 20 anos, em que nunca mais tivemos ocasião de nos reunirmos.

Saí da Suíça com 16 anos e titular do Permis B. Infelizmente, por razões independentes da minha parte, tive de fugir. Pensei, naquela altura, que era a melhor solução para me proteger e permaneci em França durante alguns anos em situação clandestina.

É inútil dizer-lhe que foram anos vividos com muita dor e sobretudo solidão. Tive que enfrentar a incompreensão da parte da minha família e o abandono da parte do meu pai durante sete anos. Compreende?

Com muita força e coragem consegui ultrapassar todos os obstáculos. E sempre com a esperança de voltar a ver um dia os meus queridos manos. Regressei a Portugal há um ano, tenho 35 anos, e hoje sou casada e mãe de três filhotes.

E não é só em mim que penso, também neles, sobretudo na minha filha, que tem hoje 17 anos, e que me implora a ocasião de conhecer enfim os tios.

Com certeza que o sr. ou sra. está ao corrente do escândalo da Casa Pia de Lisboa. Tenho vivido um Inferno, é uma luta constante que tenho e tenho que livrar de mim mesma. A minha vida parou, compreende?

Desculpe, mas é muito difícil exprimir o que sinto. Também fui vítima desses indivíduos que roubaram o que tínhamos de mais precioso em nós: a nossa inocência, a nossa infância.

Infelizmente, também fui testemunha e sou um elemento muito importante nesta história. Julguei que, ao decorrer dos anos, tivesse separado isso tudo, mas foi um erro; o mal estava somente adormecido.

Foi quando vi o meu nome e dos meu colegas nas páginas dos jornais a contar um sucedido que me fez enorme choque. Comecei a reviver absolutamente tudo o que queria esquecer até hoje.

Eram como peças de um puzzle que se formava, uma a uma, progressivamente. Vejo o sofrimento de crianças, ainda tão pequeninas, que nem vale a pena entrar em detalhes.

Este sentimento que tenho hoje de culpabilidade de não ter feito nada para os ajudar. Mas que poderia eu fazer? Chorávamos muitas vezes agarrados uns aos outros.

Éramos solidários, estávamos unidos na mesma dor. Já não bastava sentirmo-nos abandonados, carentes de carinho, etc. Hoje posso dizer que nos mataram. Algumas ou alguns desses monstros que negam o que fizeram há 20 anos estão a condenar-nos uma segunda vez.

O que é mais grave era a cumplicidade e omissão de certas pessoas que tinham o dever de nos proteger. Perdemos o pouco de confiança que tínhamos nos adultos.

Eu, pessoalmente, precisei de muito tempo para conseguir ter confiança em alguém na minha vida de adulto. Aprendi a crescer de uma forma muito dolorosa.

Não como praticamente nada, e numa semana perdi 5 quilos e não durmo. Agora tive que reagir porque, sem dar conta, apanhei uma depressão nervosa.

Ando com tratamentos médicos para conseguir superar. Onde é que está a justiça, nisto tudo? Vivo com um enorme sentimento de dor e de revolta. O que me surpreendeu mais foi que julgava que estava pior do que muitos colegas meus.

Muitos, por medo, preferem calar-se e outros do meu conhecimento tiveram vidas totalmente destroçadas e fins dramáticos que infelizmente já não estão para falar. Eu nunca vivi, sobrevivi.

Agora, por solidariedade, quero continuar a ir para a frente. Talvez alguns desses senhores já não sejam condenados, mas que o nome deles fique bem manchado... que muitos deles que são maridos e pais de filhos sintam o peso de horror das famílias e amigos em cima deles, como nós o sentimos e assim não é comparável ao que nós sentimos quando éramos crianças sem defesa.

Que assumamos erros do passado porque chorar em frente a uma câmara de televisão é fácil. Um homem também chora, houve quem o dissesse, mas existem várias razões para chorar, e uma deles é: cobardia.

Peço um pouco de respeito pela nossa dor. Agora o que nos resta é voltar ao ponto de partida, termos que reaprender a reconstruirmo-nos novamente. Quanto tempo será preciso? Meses, anos? Sinto-me suja, usada, destroçada. É por essa razão que preciso hoje, mais do que nunca, do apoio dos meus dois irmãos.

Por favor, ajudem-me, eu não conheço o sr. ou a sra. que está a ler esta carta, e deve compreender que para mim foi muito difícil confiar-me a uma pessoa completamente desconhecida. Tomei riscos. É um SOS que lanço, não faço projectos e devo confessar que não sei o que o dia de amanhã me reservará."

ÍNDICE


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